segunda-feira, 25 de agosto de 2008

dia quatro

Naquela caixinha tinha de tudo, coisas do século passado que a tia-bisavó deixou de herança. Irene conviveu pouco com a velhinha, Titá morreu de câncer na língua, quando ela tinha apenas dois anos. De sua história só sabia que tinha sido uma mulher feminista, a única na família que nunca se casou, que trabalhava de caixeira-viajante, e tinha amantes em vários lugares. Deixara a lembrança com o sobrinho-neto, pai de Irene, para ser entregue quando aquela estivesse mais moça, retribuição de um brinco que Irene lhe presentiou. Não lembrava nada disso, mas assim lhe foi contado, bem como a aparição de seu espírito. Apareceu para uma prima de segundo grau que era médium, contou um pouco sobre a vida do além, e revelou algumas premonições para os que ficaram. Sobre Irene, garantia longevidade, graças ao semblante luminoso que possuia.

Pensou que a história era mentira, criatividade do pai, num momento Gabriel García Márquez. Depois pensou que era especial, uma luz em pessoa. Imaginou enterrando os entes queridos, o velório no cemitério, o dia chuvoso... O drama foi tão real, que lhe escorreu uma lágrima, foi o necessário para despertar do pesadelo. Quando começou a supor que a veria a noite, resolveu abrir a tal caixa. Irene tem pavor dessas estórias de espírito, e os mistérios da morte, e anda trabalhando duro para aceitar como particularidade de seu gênero.

A caixa era de madeira, na frente tinha uma foto de algum lugar que parecia os arcos da lapa, mas não era. Dentro tinha moedas de outros países, cartas românticas, poesias, objetos toscos e papéis e mais papéis. Entre eles, achou esse, estava escrito "receita pra boi dormir e sonhar" :

Coloque-o no colo. Segure na coluna desenhando um arco, vai proporcionar uma sensação de intereza . Olhe-o com ternura, dê-lhe um cheiro na face, fazendo um contato de pele suave. Ofereça o seio; pode sussurrar algo melódico e deixe que naturalmente ele vai chupar.

Ensaiou enquanto lia, o vazio em seus braços ganhou forma, e o bico enrigeceu. Dobrou o papel e guardou num lugar seguro, aquilo poderia ser útil. Jogou fora algumas quinquilharias, e passou um paninho na caixa.